domingo, 18 de março de 2012

Aula 3 – Objetivos, concepções e valores da Governança Corporativa

1. Objetivos das corporações

O foco preliminar da governança tem sido a análise dos objetivos das companhias, tendo em vista suas interfaces com as demandas e os direitos de grupos que são definidos genericamente como stakeholders.

Os stakeholders podem ser classificados em quadro grupos:

a) os shareholders, denominação genérica de proprietários e investidores;

b) os internos, efetivamente envolvidos com o monitoramento e a geração de resultados nas companhias;

c) os externos, integrados à cadeia de negócios; e

d) o entorno, que engloba categorias não participantes diretamente das cadeias de geração de valor, mas também alcançados pelos objetivos corporativos e pelos critérios com que são tomadas as decisões para maximizá-los.

O quadro 1 a seguir fornece uma listagem dos principais stakeholders com que as empresas interagem:

SHAREHOLDERS: Proprietários, investidores.

Quanto ao regime legal: acionistas e cotistas.

Quanto à participação: majoritária e minoritária.

Quanto à gestão: participantes ativos e outorgantes.

Quanto ao controle: integrantes do bloco de controle e grupos fora do bloco de controle.

INTERNOS: Envolvidos com o monitoramento e a geração de resultados.

Órgãos de governança: conselho fiscal, conselho de administração, auditores independentes, direção executiva e auditores internos.

Empregados

EXTERNOS: Integrados à cadeia de negócios.

Credores

Partes interessadas: fornecedores diretos, integrantes distantes da cadeia de suprimentos, clientes e consumidores.

ENTORNO

Restrito: comunidades locais em que a empresa atua.

Abrangente: a sociedade como um todo.

Governos

Organizações não Governamentais

Quadro 1: Listagem dos principais stakeholders, internos e externos, com as empresas que interagem.

2. Os interesses dos stakeholders

Cada um desses subgrupos de stakeholders mantém relações e tem interesses legítimos em jogo nas companhias. O quadro 2 traz uma síntese indicativa desses interesses.

STAKEHOLDERS

INTERESSES

SHAREHOLDERS

Proprietários, investidores: dividendos ao longo do tempo, ganhos de capital (maximização do valor da empresa) e máximo retorno total.

INTERNOS: Envolvidos com o monitoramento e a geração de resultados.

Conselho de administração e direção executiva: base fixa de remuneração, bonificações de balanço e stock options.

Outros órgãos de governança: retribuições em bases fixas ou variáveis.

Empregados: salários, participação nos lucros, benefícios assistenciais materiais, segurança, reconhecimento, oportunidades e desenvolvimento pessoal.

EXTERNOS: Integrados à cadeia de negócios.

Credores: resultados positivos, capacidade de liquidação de dívidas contraídas.

Fornecedores: regularidade, desenvolvimento conjunto.

Clientes e consumidores: preços justos, produtos seguros, conformes e confiáveis.

ENTORNO

Comunidades locais: geração de empregos e contribuições para o desenvolvimento.

Sociedade como um todo: bem-estar social, balanço social efetivamente contributivo para inclusão socioeconômica.

Governos: conformidade legal, crescimento, geração de empregos.

Organizações não Governamentais: adesão às suas principais causas.

Quadro 2: Interesses legítimos dos diferentes grupos de stakeholders.

A legitimidade dos interesses dos shareholders (proprietários e investidores) tem por fundamento maior o valor, para a sociedade como um todo, do espírito de empreendimento, dos riscos de montar negócios inovadores, da disposição em criar produtos substitutos daqueles que, há muito tempo, têm sido bem aceitos pelos consumidores e da ousadia de enfrentar competidores estabelecidos em estruturas oligopolistas de mercado. O máximo retorno total dos shareholders é um estímulo para novos empreendimentos, ao mesmo tempo em que a busca bem-sucedida pela maximização do retorno é condição essencial para a continuidade das empresas em operação.

Um dos fundamentos mais sólidos da legitimidade dos interesses dos demais stakeholders é de natureza moral: trata-se de grupos não simplesmente sujeitos a servir de instrumentos para objetivos de terceiros – cada um deles tem seus próprios objetivos, almejam seus próprios fins e objetivam também a maximização de seus retornos. Deste ponto de vista, o lucro não é a única categoria de retorno maximizável. Os salários e outros benefícios materiais e imateriais aos empregados também são formas de retorno de outra categoria de riqueza indispensável às companhias: o capital humano.

Outro aspecto essencial de legitimação dos interesses dos demais stakeholders é que todos eles, embora em graus distintos e de difícil hierarquização, atuam como forças sinérgicas, em princípio comprometidas com a sobrevivência, com o crescimento e com a continuidade das companhias.

Por último, mas não menos importantes, há dois outros aspectos que legitimam interesses externos às empresas. Um é a missão civilizadora das corporações: boa parte da convivência social civilizadora é função de suas diretrizes estratégicas e de suas políticas. Outro é o reconhecimento de que o entorno das corporações movimenta-se, preponderantemente, como suporte de seu desenvolvimento sustentável.

3. O que é governança corporativa

O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC assim define: “Governança corporativa é o sistema pelo qual as sociedades são dirigidas e monitoradas, envolvendo os relacionamentos entre acionistas/cotistas, conselho de administração, diretoria, auditoria independente e conselho fiscal. As boas práticas de governança corporativa têm a finalidade de aumentar o valor da sociedade, facilitar seu acesso ao capital e contribuir para sua perenidade”.

Dessa forma, a governança corporativa pode ser entendida com:

a) guardiã de direitos das partes com interesses em jogo;

b) sistema de relações pelo qual as sociedades são dirigidas e monitoradas;

c) estrutura de poder que se observa no interior das corporações; e

d) sistema normativo que rege as relações internas e externas das empresas.

4. Os valores da governança corporativa

A prática dos conceitos de Governança Corporativa precisa revestir-se objetivamente de quatro pilares (valores):

a) Accountability: responsabilidade pela prestação de contas fundamentada nas melhores práticas contábeis e de auditoria;

b) Compliance: conformidade no cumprimento de normas reguladoras, expressas nos estatutos sociais, nos regimes internos e nas instituições legais do país.

c) Disclosure: usualmente chamada de transparência, com dados acurados, registros contábeis fora de dúvida (princípio da evidenciação) e relatórios entregues nos prazos combinados;

d) Fairness: traduzida por senso de justiça e de equidade para com os acionistas minoritários contra transgressões de majoritários e gestores.

4.1. Accountability

Quanto ao princípio da prestação de contas, estabelece o Código Brasileiro das Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC: “Os agentes da governança corporativa devem prestar contas de sua atuação a quem os elegeu e respondem por todos os atos que praticarem no exercício de seus mandatos”.

A esse respeito, deve ser destacado o conceito de accountability, que seria uma espécie de responsabilidade pelos atos dos administradores, uma prestação de contas aos acionistas. É recomendável que exista nas companhias mecanismos que possibilitem aos acionistas a “contestabilidade” e a fiscalização dos atos dos administradores. Accountability é um termo de origem inglesa que significa a obrigação de prestar contas dos resultados conseguidos em razão da posição que o indivíduo assume e do poder que detém. O executivo principal da companhia deve prestar contas ao conselho de administração, além de ser o responsável pela execução das diretrizes fixadas pelo conselho. Cada um dos diretores é pessoalmente responsável, também, pelas suas atribuições na gestão e deve prestar contas disso ao executivo principal e, sempre que solicitado, ao conselho de administração, aos sócios e aos demais envolvidos, na presença do executivo principal. Deve o executivo principal prestar todas as informações que sejam pertinentes, além das que são obrigatórias por lei ou regulamento, tão logo estejam disponíveis, e a todos os interessados, prevalecendo a substância sobre a forma. A diretoria deve buscar a clareza e a objetividade das informações, mediante linguagem acessível ao público-alvo. As informações devem ser equilibradas e de qualidade, abordando tanto os aspectos positivos quanto os negativos, para facilitar ao leitor a correta compreensão e avaliação da sociedade. Qualquer informação que influenciar decisões de investimento deve ser divulgada imediata e simultaneamente a todos os interessados.

4.2. Compliance

Nos dias de hoje, em meio à crise financeira que abalou os mercados mundiais, aumenta cada vez mais a necessidade de conhecer melhor os serviços e produtos que você e sua empresa adquirem, se estes possuem elevados padrões de qualidade bem como o grau de riscos que podem lhe oferecer e como fazer para minimizá-los. Preocupação com a qualidade é ordem do dia! E é para isto que existe a área de Compliance nas empresas.

Quando uma empresa está em Compliance, significa que ela está em conformidade, ou seja, cumprindo as leis e regulamentos internos e externos. Para que isso ocorra, todos os colaboradores dentro da Instituição devem se envolver, sempre executando suas tarefas dentro dos mais altos padrões de qualidade e ética. As atividades de Compliance inserem-se em um contexto de gestão preventiva de riscos, de monitoramento e supervisão contínua sobre as práticas corporativas e operações cotidianas, como forma de garantir que a instituição respeite as boas práticas de governança.

A missão da área de Compliance em uma Instituição está voltada a assegurar a existência de políticas e normas, pontos de controle nos processos para mitigar riscos, relatórios que visem melhorias nos controles internos e práticas saudáveis para a gestão de riscos operacionais. Tudo isso para garantir credibilidade frente a clientes, fornecedores, acionistas e colaboradores, de forma transparente, assegurar que a estrutura organizacional e os procedimentos internos estão em conformidade com os regulamentos externos e internos, além de permitir que a companhia mantenha suas finanças saudáveis, minimizando riscos de perdas.

No Brasil, as empresas participantes dos mercados de seguros, previdência privada aberta, capitalização e resseguro devem cumprir, além de leis federais, estaduais, municipais e decretos, os normativos de autoridades regulatórias como a SUSEP – Superintendência de Seguros Privados, assim como o regulamento interno da empresa. Já os bancos seguem as normas do Banco Central do Brasil.

A existência da área de Compliance tem sentido para:

1. Salvaguardar a confidencialidade da informação confiada à instituição por seus clientes, fornecendo tratamento adequado de forma a evitar uso inapropriado e inadequada divulgação. Isto significa evitar a eventual proliferação de boatos e assegurar que a informação do cliente seja somente revelada a quem efetivamente dela necessite conhecer (este é o chamado princípio do “need to know basis”). Trata-se também de proteger as informações materiais sobre os negócios da instituição.

2. Manter a transparência e correição na condução dos negócios da instituição, contribuindo na manutenção dos mais altos padrões de qualidade e aumentando, portanto, a competitividade e lucratividade dos negócios. A segurança oferecida ao cliente e a criação de uma reputação e credibilidade no mercado acabam se tornando instrumentos de marketing da instituição que pode se valer desses indicadores para aumentar sua competitividade na indústria em que atua. Trata-se de um diferencial altamente estratégico.

3. Evitar o conflito de interesses entre as diferentes áreas da instituição, entre a instituição e seus clientes e finalmente entre a instituição, seus clientes, os clientes de seus clientes, e seus funcionários; assegurando adequada administração de eventuais conflitos entre todos esses. Trata-se da administração do conflito entre interesse pessoal e obrigação fiduciária.

4. Cumprir com o arcabouço regulatório local e internacional bem como com as instruções da matriz no que diz respeito à forma de condução dos negócios no país, forma de comportamento dos funcionários, forma de relacionamento com reguladores, imprensa, clientes, e tantas outras regras corporativas impostas na localidade.

5. Evitar problemas legais e demandas judiciais que podem ser altamente dispendiosos e danosos à reputação da instituição.

6. Evitar ganhos pessoais indevidos por meio da criação de condições artificiais de mercado ou da manipulação e uso de informação privilegiada a que o funcionário tenha tido acesso ou mesmo ouvido em função de sua posição e da qual tenha se utilizado em seu próprio beneficio de forma a auferir uma vantagem econômica ou evitar uma perda ou prejuízo.

4.3. Disclosure

O Código Brasileiro das Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC, ao dispor sobre a transparência, estabelece: Mais do que a obrigação de informar, a administração deve cultivar o “desejo de informar”, sabendo que da boa comunicação interna e externa, particularmente quando espontânea, franca e rápida, resulta um clima de confiança, tanto internamente, quanto nas relações da empresa com terceiros. A comunicação não deve restringir-se ao desempenho econômico-financeiro, mas deve contemplar também os demais fatores (inclusive intangíveis) que norteiam a ação empresarial e que conduzem à criação de valor. A transparência visa possibilitar aos acionistas e aos investidores em geral melhor avaliação das oportunidades, preços e condições de negociação dos valores mobiliários emitidos pela companhia. Os investidores necessitam saber a real situação econômico-financeira das companhias, suas perspectivas de rentabilidade futura, seus projetos de expansão e modernização, os eventuais direitos que regulam as relações entre os principais acionistas e dirigentes das companhias, assim como os negócios que são relacionados com partes relacionadas. Toda informação que impacta os negócios da companhia, especialmente qualquer que possa influenciar decisões de investimento, deve ser divulgada imediata e simultaneamente a todos os interessados, de forma que possam avaliar, por si mesmos, todos os dados necessários para a verificação do efetivo preço dos valores mobiliários emitidos pela companhia. Ao adotar critérios mais rigorosos de transparência, a companhia afasta os insiders, protegendo os demais acionistas.

As demonstrações financeiras devem retratar a real situação econômico-financeira da companhia, para informação dos seus próprios órgãos, dos acionistas, dos credores e do público em geral. No caso da transparência, a administração executiva deve satisfazer as diferentes necessidades de informações dos acionistas, dos conselhos de administração e fiscal, da auditoria independente, das autoridades de mercado e das partes relacionadas (stakeholders). Ser transparente tornou-se uma das mais importantes práticas da boa governança corporativa. Enquanto os lucros podem ser avaliados pela linguagem fria dos números, a competitividade pode ser avaliada pela qualidade da governança. É por isso que, entre todos os predicados das boas práticas, um dos mais importantes é sem dúvida a elaboração de uma linguagem propriamente transparente. Em primeiro lugar, como uma maneira de nomear as estratégias e resultados da corporação, de falar deles sem artifícios ou meias palavras. A transparência transformou-se num valor. Governança corporativa e transparência são termos sinônimos, o que faz com que esta última esteja cada dia mais e mais arraigada na agenda dos acionistas, investidores, clientes, analistas, autoridades, comunidade e demais agentes de mercado e na agenda das empresas. A tendência é que a qualidade da transparência venha redefinir as relações das companhias com os investidores: há cerca de dez anos, a divulgação da informação se restringia à obrigação legal de publicar o balanço financeiro ao menor custo possível. Num momento seguinte, as companhias mostraram-se preocupadas em detalhar as atividades, porém voltadas ao próprio negócio. Atualmente, a mentalidade sobre o que e como divulgar vem se estruturando num tripé fundamental: o resultado econômico-financeiro, a ação ambiental e o papel social.

4.4. Fairness

A equidade transmite a segurança de que a companhia arbitra seus relacionamentos respeitando a igualdade de direitos. A respeito desse princípio, dispõe o Código Brasileiro das Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC: Caracteriza-se pelo tratamento justo e igualitário de todos os grupos minoritários, sejam do capital ou das demais “partes interessadas” (stakeholders), como colaboradores, clientes, fornecedores ou credores. Atitudes ou políticas discriminatórias, sob qualquer pretexto, são totalmente inaceitáveis. É a equidade que deve pautar o relacionamento entre os agentes da governança corporativa e as diferentes classes de proprietários. Assim, os direitos dos stakeholders devem ser estabelecidos de maneira justa e equânime, de modo que sua apropriação ocorra rigorosamente de acordo com as regras contratadas, em ambiente de grande transparência. O princípio da equidade defende também o tratamento igualitário de todos os acionistas, uma vez que todos os sócios são proprietários da companhia, na proporção de sua participação acionária, não devendo existir ações sem direito a voto. Com isso, democratiza-se o capital da companhia e todos os acionistas passam a ter maior participação e representatividade. O direito a voto deve ser assegurado a todos os acionistas, independentemente da espécie ou da classe de suas ações. Essa vinculação entre poder de voto e participação no capital social é fundamental para o alinhamento de interesses de todos os acionistas, uma vez que o voto é o instrumento mais eficiente de fiscalização.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Aula 2 – Conflitos de agência

Adaptado do livro “Governança corporativa: fundamentos, desenvolvimento e tendências”, de Adriana Andrade e José Paschoal Rossetti.

1. A origem dos conflitos de agência

As várias hipóteses de conflitos potenciais entre acionistas e gestores ou entre acionistas majoritários e minoritários têm sua origem na dispersão do capital das companhias e na consequente separação entre a propriedade e a gestão. Esses conflitos são denominados de conflitos de agência.

As grandes corporações desenvolveram-se a partir de duas forças empreendedoras, diferenciáveis em suas origens, quanto às formas de financiamento dos seus empreendimentos: a interna e a externa.

Financiamento interno. Grande parte das corporações de negócios, hoje listadas entre as maiores do ranking em seus países de origem, foi criada por empreendedores talentosos que construíram impérios com recursos originários dos seus próprios negócios. Suas motivações maiores foram o expansionismo, o gigantismo corporativo, a dominação do setor de atividade e a perpetuação do empreendimento. Muitos tinham aversão à alavancagem por exigíveis (debt) e também não recorreram ao mercado de capitais (equity) para seus projetos de expansão. Estabelecidos em atividades promissoras e, durante muito tempo, pouco concorridas, acumularam fortunas, reinvestindo os bons resultados operacionais de seus negócios, expressos por margens excepcionalmente elevadas.

Financiamento externo. Outras corporações estabeleceram-se com ampla captação de recursos (debt e, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, equity). As captações massivas foram viabilizadas, especialmente a partir do início do século XX, pelo desenvolvimento do sistema financeiro e do mercado de capitais. Empreendedores com bons projetos, movidos por objetivos estratégicos de rápida expansão e com competente atuação nos mercados financeiros, também construíram impérios, com objetivos não diferentes dos pioneiros que capitalizaram seus empreendimentos pela obstinada prática do reinvestimento dos resultados internamente gerados. papel essencial do mercado financeiro é viabilizar e operacionalizar os fluxos de financiamentos na economia, no qual interagem os agentes econômicos.

Nos dois casos, a despeito das diferenças quanto à origem dos recursos que impulsionam a formação das grandes companhias, o controle acionário terminou sendo pulverizado. No caso das companhias que optaram pelo financiamento interno, isso ocorreu em médio e longo prazo, após duas ou três gerações, pelos direitos de sucessão, após o desaparecimento dos fundadores. No caso das empresas que se valeram do financiamento externo, o fato ocorreu quase que de imediato, tendo em conta as características do próprio processo de financiamento, ou após uma ou duas gerações, pela subsequente sucessão dos principais controladores.

Como, em ambos os casos, forma pouco comuns as ocorrências de sucessores que tivessem interesse e aptidão para o exercício de funções gerenciais e para o desenvolvimento de negócios, a consequência inevitável foi a separação entre a propriedade e a gestão, buscando-se no mercado de trabalho gestores capazes de dar continuidade aos negócios corporativos. A estes se confiou a missão – que antes era exercida por fundadores excepcionalmente dotados de apetite empresarial e talento para os negócios – de dar continuidade aos empreendimentos, promover seu crescimento, prover as condições para sua perpetuação e corresponder aos anseios de retorno e de maximização da riqueza dos acionistas. As grandes massas de acionistas tornaram-se assim outorgantes. E, atuando como outorgados, posicionaram-se no topo das companhias os gestores contratados para a direção executiva.

No modelo de gestão das grandes corporações do moderno capitalismo, os acionistas, como agentes principais e outorgantes, estão focados em decisões financeiras, em alocação eficaz de recursos, em carteiras de máximo retorno, em riscos e em diversificação de aplicações. E, como agentes executores e outorgados, os gestores estão focados em decisões empresariais, no domínio do negócio, em conhecimentos de gestão, em estratégias e em operações. Os acionistas fornecem aos gestores os recursos para a capitalização dos empreendimentos e as remunerações pelos serviços de gestão. Em contrapartida, os gestores fornecem serviços que maximizam o retorno dos acionistas, com o compromisso de prestarem informações precisas, oportunas, confiáveis e abrangentes sobre a condução dos negócios, sobre os riscos e vulnerabilidades da empresa e sobre suas perspectivas futuras.

Como se percebe, a separação da propriedade e da direção transferiu o controle efetivo dos acionistas para os gerentes profissionais. Originalmente condutores e controladores dos negócios, os acionistas tornaram-se uma massa não organizada e afastada da administração diária das companhias, desenvolvendo-se então, como premissa básica, um novo comportamento, claramente sinalizado no mercado de capitais:

a) os acionistas tornaram-se especialistas em avaliar os resultados comparativos das corporações e em aplicar seus recursos naquelas que proporcionassem os melhores retornos;

b) os gestores especializaram-se nos negócios que lhes foram confiados, para maximizar o retorno total de longo prazo dos investidores, mantendo-os assim permanentemente interessados em financiar as operações e os propósitos de expansão.

Estabelece-se assim entre os dois agentes, os outorgantes e os outorgados, uma relação de agência, fundamentada na contratação de decisões que maximizem o valor do empreendimento, a riqueza dos acionistas e o retorno de seus investimentos. Ocorre, porém, que os gestores profissionais também têm seus próprios interesses e procurarão maximizá-los. Em torno desta relação de agência, gravitarão assim decisões que poderão estar em oposição: as que maximizam o retorno total dos acionistas e as que maximizam o interesse dos gestores. Em consequência, para que os interesses das duas partes não se choquem, duas premissas deverão ser atendidas: uma referente aos termos dos contratos entre esses agentes; outra, referente ao comportamento deles. Os contratos deverão estabelecer todas as condições para conciliar permanentemente os interesses de outorgantes e outorgados, E os comportamentos deverão ser tais que nenhum dos agentes venha a romper, por atos oportunistas, os princípios da relação.

2. As razões dos conflitos de agência

Ocorre, porém, que os conflitos de agência no mundo dos negócios dificilmente serão evitados, por duas razões:

a) a inexistência de contrato completo (o axioma de Klein);

b) a inexistência do agente perfeito (o axioma de Jensen e Meckling).

2.1. A inexistência de contrato completo (o axioma de Klein)

O axioma de Klein foi exposto originalmente em 1983. Seus fundamentos justificam-se pelas próprias características dos ambientes de negócios, crescentemente imprevisíveis, sujeitos a turbulências e a efeitos-contágio, que podem ser fortemente comprometedores de resultados.

A era da previsibilidade extrapolável, com baixos níveis de turbulência, praticamente encerrou-se no século passado, nos anos 70. Os riscos e oportunidades eram até então previsíveis, elaboravam-se planos de longo prazo em ambientes estáveis e definiam-se projeções confiáveis de resultados. Mas essas condições deixaram de se observar na quase totalidade dos negócios. Os anos 80 marcaram a transição para uma nova era, caracterizada por descontinuidades e incertezas. E, nas últimas três décadas ocorreram mudanças radicais em todos os aspectos da vida corporativa e nos ambientes externos em que as empresas operam. Das condições globais, passando pela revisão das estratégias nacionais e chegando às reestruturações setoriais, nada mais permaneceu como antes. Transformações intensas alcançaram também o comportamento social; os padrões tecnológicos de materiais, processos e produtos; os mercados; a estrutura da produção e da demanda; a competição e a forma de fazer negócios.

Diante das descontinuidades, a gestão corporativa passou a exigir respostas flexíveis e rápidas aos sinais de mudança. Da administração por objetivos previsíveis a gestão teve de se adaptar à administração de surpresas. Consequentemente, os contratos perfeitos e completos, abrangendo todas as contingencias e as respostas às mudanças e aos desafios do ambiente de negócios, simplesmente deixaram de existir, se é que algum dia existiram realmente. E as três razões essenciais são:

a) o grande número de contingências possíveis;

b) a multiplicidade de reações às contingências;

c) a crescente frequência com que as contingências imprevisíveis passaram a ocorrer.

Isto sem contar que as corporações de negócios são um nexo de contratos, que envolvem, além de acionistas e gestores, fornecedores, trabalhadores e clientes, o que multiplica a probabilidade de ocorrência de condições contratuais de difícil definição prévia. Como todas estas realidades deságuam na impossibilidade de se definirem contratos completos, outorgam-se aos gestores, consequentemente, mais do que a execução de ações previsíveis: o direito residual de controle da empresa, resultante do livre arbítrio para a tomada de decisões em resposta a eventos não previstos. Esta condição outorgada é definida como juízo gerencial. Juízo que pode estar mais a serviço dos objetivos dos gestores do que dos acionistas, gerando conflitos de agência.

2.2. A inexistência de agente perfeito (o axioma de Jensen e Meckling)

Às condições contingenciais que tornam tecnicamente impossível a definição prévia de contratos completos, somam-se as condições que definem os comportamentos dos agentes.

Já ficou evidenciada uma das razões das dificuldades de alinhamento dos interesses dos gestores com os dos acionistas: a força do interesse próprio, que se sobrepõe aos interesses de terceiros, mesmo à presença de condições hierárquicas para a tomada de decisões. A suposição é de que a cooperação desinteressada dificilmente prevalece em relação ao jogo de interesses. Consequentemente, o agente executor estará propenso à tomada de decisões que fortaleçam a sua posição e que beneficiem os seus propósitos.

No artigo “A natureza do homem”, Jensen e Meckling definiram mais claramente esta segunda razão dos conflitos de agência. A hipótese explorada é a de que a natureza humana, utilitarista e racional, conduz os indivíduos a maximizarem sua “função utilidade” voltada muito mais para as suas próprias preferências e os seus próprios objetivos. Dificilmente objetivos alheios movem as pessoas a serem tão eficazes quanto o são para a consecução de seus próprios interesses. O axioma daí decorrente é a inexistência do agente perfeito, aquele que seria indiferente entre maximizar seus próprios objetivos e os de terceiros.

3. A tipologia dos conflitos de agência

Durante muito tempo, o problema do que hoje se denomina de governança corporativa centrou-se no conflito de agência. Uma das questões cruciais era evitar o comportamento oportunista dos gestores – descrito como moral hazard.

Muito da literatura sobre governança corporativa baseia-se no princípio de que as empresas pertencem aos acionistas e que, portanto, sua administração deve ser feita em benefício deles. O predomínio, por décadas, da visão segundo a qual as grandes empresas modernas possuem propriedade acionária dispersa, moldou o debate sobre governança corporativa: o problema de agência estava centrado no conflito entre os administradores (agentes executivos) e acionistas (agentes principais). O oportunismo consistiria de decisões dos administradores que não visassem à maximização do valor das ações. Dentro desse paradigma, boa governança empresarial significaria a adoção de mecanismos que forçassem os administradores (não acionistas) a proteger o interesse dos acionistas.

Esta, porém, é apenas uma categoria de conflito de agência, derivada das condições que prevalecem quando a estrutura de capital é pulverizada e, por consequência, a propriedade e a gestão não são exercidas pelo mesmo agente. Outra categoria, que prevalece na maior parte dos países, é a de propriedade concentrada nas mãos de uns poucos acionistas majoritários, que pode levar à justaposição propriedade-gestão. Neste caso, a questão central de agência desloca-se do conflito proprietários-gestores para o conflito majoritários-minoritários. Não é mais o proprietário que busca proteção contra o oportunismo do gestor, mas os minoritários que veem seus direitos, sua riqueza e seu retorno serem solapados pelos majoritários. Este segundo conflito de agência é o que ocorre com mais frequência nos países em que a propriedade no sistema corporativo é concentrada e o mercado de capitais é imaturo, com pequena expressão em relação a outras fontes de capitalização das empresas. É assim na maior parte dos países emergentes. Na América Latina, como no Brasil, esta é uma das questões centrais da boa governança.

Aula 1 - Contextualização

Adaptado do livro “Governança corporativa: fundamentos, desenvolvimento e tendências”, de Adriana Andrade e José Paschoal Rossetti.

1. A ascensão do capital como fator de produção

A Revolução Industrial subordinou a produção ao processo de acumulação de capital. Antes dela, a terra era o fato predominante e sua propriedade era fonte inquestionável de poder. A produção agrícola e os produtos artesanais originários dos recursos naturais representavam a maior parte da produção e da renda.

Com o advento da economia fabril, baseada no uso crescente de equipamentos mecanizados, ocorreu a substituição do modo de produção. A indústria, movida pelos novos bens de capital, aumentou significativamente sua participação na formação da riqueza, declinando a da produção rural, fundamentada na terra.

2. A institucionalização da moderna sociedade anônima

O sistema de sociedade anônima foi uma das mais importantes formas de captar recursos para as dimensões do capitalismo ocidental. Esse sistema estabeleceu-se tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, irrigando o crescimento das empresas.

As precursoras deste sistema foram as “companhias licenciadas” dos séculos XVI, XVII e início do século XVIII. Mas a primeira sociedade anônima moderna foi fundada em 1813, com 76 acionistas. Rapidamente, esta instituição penetrou todos os setores produtivos. Em 1899, nos Estados Unidos, o censo econômico registrou que 66,7% de todos os produtos manufaturados provinham de sociedades anônimas.

No início do século XX, completou-se a institucionalização desse modelo. Eram comuns corporações com mais de 100.000 acionistas. A maior dos Estados Unidos, a AT&T, contava com mais de 560.000 acionistas. O automatismo das forças de mercado, o incentivo do lucro e a euforia contagiante com o crescimento da riqueza estavam estabelecidos nas primeiras décadas do século XX.

O desenvolvimento da ciência da administração acompanhou todos os grandes movimentos de formação e de maturação do sistema capitalista. Tornaram-se parte de um mesmo todo a formação do capitalismo, a evolução do mundo corporativo e o desenvolvimento da ciência da administração.

3. O processo de formação do capitalismo

Ao longo do processo histórico de formação do capitalismo, quatro aspectos relacionados à administração tornaram-se dia a dia mais nítidos:

a) o gigantismo e o poder das corporações;

b) o processo de dispersão do controle das grandes corporações;

c) o divórcio entre e propriedade e a gestão; e

d) a ascensão de uma estrutura técnica de poder dentro das corporações.

A propósito do gigantismo e poder das corporações, veja-se o gráfico a seguir, coletados com base em empresas dos Estados Unidos:

Gráfico 1 - Receitas operacionais das 500 maiores corporações em relação ao PNB (%)

Receitas oepracionais 500 empresas

4. O processo de dispersão do capital

Uma das mudanças mais notáveis do mundo corporativo foi a dispersão do capital de controle das companhias. Cinco fatores podem ser apontados como determinantes dessa mudança:

a) a constituição das grandes empresas na forma de sociedades anônimas e o financiamento de seu crescimento pela subscrição pública de novas emissões de capital;

b) a abertura do capital de empresas fechadas e o aumento do número de empresas listadas nas bolsas de valores;

c) o aumento do número de investidores no mercado de capitais, a crescente diversificação de suas carteiras de ações e o consequente fracionamento da propriedade das companhias;

d) os processos sucessórios, desencadeados com a morte dos fundadores das companhias; e

e) os processos de fusão das grandes companhias que, ao mesmo tempo, ampliam o número de acionistas, mas reduzem a participação de cada um no capital total.

O sistema acionário possibilitou, de um lado, o expansionismo e o agigantamento do mundo corporativo, bem como a maior concentração do poder econômico. Mas, de outro lado, manifestou-se dentro dele um importante movimento em direção oposta à da concentração: a dispersão do número de acionistas e a pulverização da propriedade.

Mais ainda: a propriedade acionária tornou-se menos permanente, pelo crescente volume das negociações nas bolsas de valores. E, junto com a pulverização e as mudanças na constituição dos proprietários, estabeleceu-se um processo de despersonalização da propriedade.

A tabela e o gráfico a seguir dão uma dimensão do grau de dispersão do capital acionário de algumas empresas de grande porte nos Estados Unidos, ao final da década de 1920.

Tabela 1 - Dispersão do capital acionário em companhias de grande porte nos Estados Unidos (1930)

Dispersão do capital acionário

Gráfico 2 - Distribuição das ações de 144 companhias americanas da lista das 200 maiores (1932)

Distribuição das ações 144 companhias

5. O divórcio entre a propriedade e a gestão

A dispersão da propriedade e a consequente ausência dos acionistas acarretaram outras mudanças profundas nas companhias. Três se destacam:

5.1. A propriedade desligou-se da administração

Na virada do século XIX, os fundadores das empresas – mesmo daquelas que recorreram à sociedade anônima como forma de constituição e capitalização – estavam presentes nas empresas, dispunham de instrumentos para o seu controle e exerciam o comando. Mas, ao longo do século XX, os processos sucessórios, o avanço das sociedades anônimas de capital aberto e o desenvolvimento do mercado de capitais mudaram a estrutura de poder nas companhias.

5.2. Os “capitães de indústria”, fundadores-proprietários, foram substituídos por executivos contratados

Enquanto os fundadores-proprietários assumiam três papéis (o de ter interesses como acionistas controladores, o de exercer a gestão e o de ter poder efetivo sobre os rumos da companhia), os executivos contratados movimentam as empresas, exercem efetivamente o poder dentro delas, mas não têm o interesse típico dos proprietários.

5.3. Os objetivos deixaram de se limitar à maximização dos lucros

Nas modernas grandes empresas, onde o poder é exercido pela gestão, não pela propriedade, outros interesses se chocam com a maximização dos lucros. Os gestores podem estar interessados em outros objetivos, que vão da segurança de suas operações, sob a aversão a riscos, até a elevação de seus próprios ganhos, em detrimento da renda dos acionistas.